Artigo: Enaura Barreiros e o poste
Robledo Carlos (de Divinópolis)
Eu nasci na Marechal Deodoro, ali subindo para a Chapada. Sou filho de Dona Dulce, funcionária pública e Sebastião Carlos, caminhoneiro, comerciante, representante comercial, de tudo ele fez um pouco; ambos falecidos.
Meus avós maternos e paternos moravam nas imediações, mais precisamente a vó Clotilde, que nos criou após a morte prematura de mamãe. Ela sempre tocou harmônio no Sagrado Coração de Jesus, onde fazia parte da liturgia, cantava e tocava louvores, o que para mim, sempre foi uma honra!
Ali, bem em frente, ficava o Cine Rocha, onde ainda pequeno frequentava aquela casa do Sr. Rocha, compadre de meu pai.
Mudei para a Rua Enaura Barreiros ainda bem pequeno, uns quatro para cinco anos, foi ali que vivi nessa terra que amo tanto.
Ao longo dos anos, criei dentro de mim, e ainda carrego comigo, uma sensação de pertencimento, de parentesco, um vínculo de amor a todos esses que ali também moravam.
E tinham alguns que eram pessoas mais abastadas, vamos dizer assim, boas casas, filhos que frequentavam boas escolas, carros, fazendas, etc..
Mas a grande maioria eram de famílias humildes e simples.
Uma certa ocasião, ouvi uma pessoa falar que essa rua era uma rua de milionários. Contei isso para a minha mãe achando a coisa mais linda do mundo, feliz e inocentemente. Ela olhou para mim, sorriu e disse:
- É porque, nós, moradores dessa rua, somos muito unidos, e quando podemos, fechamos a rua com fogueiras, quadrilhas e muitas outras festividades. Quanto a milionário, olhe para seus pés.
Eu calçava um conga que tinha a sola furada e a palmilha feita de câmara de ar de caminhão.
Vi que era, somente aos olhos dos outros, a nossa felicidade, talvez a maior riqueza.
E era uma mistureba danada, fazendeiros, engenheiros, comerciários, farmacêuticos, caminhoneiros, pedreiros, funcionários públicos e muitas donas de casa.
A grande maioria era uma criançada quase que da mesma idade, talvez uns oito anos de diferença, pois a maioria, assim que completavam quinze anos, geralmente começavam a trabalhar.
Fomos criados como um só, um em muitos. Até hoje esse sentimento fraterno perdura no meu coração.
Era o filho do rico com o pobre, do branco com o preto, do católico com o espírita, uns fortes, outros franzinos, no caso, eu.
Tínhamos um bloco de carnaval, saíamos e dávamos algumas voltas nos quarteirões próximos, éramos uns trinta. Na frente, de abre-alas, ia o surdo que ficava em cima de um carrinho de entrega de gás que era do Juninho (Sr.Guilherme Cassini) que tinha uma revenda de gás perto do nosso campinho, onde hoje é a rodoviária. Era tudo muito organizado e, sobretudo, tínhamos ritmo. Éramos Pelé, Fedegoso, Matuza, Nardeli, Benicio, Pedrinho, Helinho, Serginho Marçal, Chumbinho, Vandinho, Flávio, Alexandro, Juquinha, Vandinho, Zé Boneca, Cláudio Tarzanzinho, Jader, Rominho, Juliano, Alysson,Carlyle, Raniere, Pietro,Iran, eu e outros... desculpem a memória.
Éramos muito unidos, fizemos uma banda de rock que se chamava Pólem. Fizemos algumas apresentações, a mais importante foi no colégio Santa Terezinha em um evento de escolha da Boneca Cinderela onde meninas ainda bem novinhas, de uns quatro ou cinco anos competiam, minha irmã Natália foi uma das vencedoras.
Mas nosso maior orgulho era nosso time de futebol. Nosso campinho era impecável, nós o mantínhamos limpinho, fazíamos multirão com o cuidado para manter as vassourinhas e os assa-peixes que insistiam ali em nascer.
A última casa da rua era do Primo, consertava lambretas e vespas, pai do Helinho.
No fundo de sua casa, ficava a trave do visitante, era feita de bambus e pura urtiga. Haviam moitas enormes desta planta, folhas grandes, de cor intensa e muito peluda, que num simples toque, provocava uma queimadura e dor intensa seguida de coceira, que passava alguns minutos depois.
Portanto, sempre começávamos atacando nesse gol, pois como os adversários não sabiam, quando a bola saía fora e caía sobre as urtigas, eles iam despretensiosamente buscá-la e se sapecavam todo, o que nos dava um pouco de vantagem no placar, pois ficavam todos se coçando. Tínhamos nossos craques, Cotonho, Luiz Henrique Frade, (Buru)Deninho, Zé Boneca, Korea, Pelé e outros mais, ao qual seleto grupo, eu não pertenço.
Nosso maior rival era o time da Rua dos Viajantes, era um bom time, Cláudio Chicre, Eduardo, Arnaldo e outros.
Nesse espaço fizemos fogueiras, acampamentos, cavernas, assamos preá, batatas-doces e milhos que colhíamos (alheio) do pasto do Sr. Zé Montolli, fugindo de suas mulas bravas.
A minha gratidão à Deus é infinita em pensar o quanto fomos felizes ali naquele simples espaço, eu e tantos outros.
À noite, tínhamos o hábito de ficar debaixo de um poste. Aquela luz tênue, amarela, incandescente, que nos norteava nos piques, rouba-bandeira, queimada e até mesmo nas brigas que ocasionalmente aconteciam, e que determinados golpes eram extremamente proibidos, como mordida, dedos nos olhos e tackle (aquele golpe fatal do Ted Boy Marinho que o cara joga os dois pés no peito do adversário), esse era proibidíssimo.
Ficávamos ali sentados, cavacando o paralelepípedo e contando causos.
Geralmente e quase que instintivamente, nos separávamos por uns quatro minutos. É que em determinada hora, anunciava a Pantera Cor-de-Rosa e alguém sempre anunciava:
- Vai começar....
Todos corriam para suas casas, geralmente ficavam por uns três minutos. Em seguida, todos voltavam felizes para debaixo do poste.
Na hora de recolher, por volta de 21 horas, geralmente começavam os gritos das mães para os filhos... parecia até que combinavam para nos chamar para dentro de casa.
- Fulano, beltrano... pra dentro, você tem aula amanhã cedo, tá na hora!
Mas o pior estava por vir, geralmente esperavam a minha mãe.
É que ela nos chamava, a mim e aos meus irmãos, no diminutivo:
- Nodinho, Deninho, Robledinho e Rominho!
Isso era demais para a galera, nos gozavam sempre por essa forma que ela nos chamava, eles até a imitavam! Chegando em casa, pedíamos à mamãe que não nos chamasse daquela forma no diminuitivo, pois nos davam a maior gozeira.
Hoje o poste está com luz de led, as mariposas voam tontas sob ele, talvez à nossa procura, mas as nossas mães já não nos chamam mais e, talvez para alguns desses que ficavam sob a luz do poste, foi a última vez que nos vimos.