De portas e janelas abertas para a verdade

Descobertas as da antiga Igreja do Rosário que foram vendidas quando o mais antigo templo católico da cidade ainda estava em pé e de pé

De portas e janelas abertas para a verdade
Foto da Igreja do Rosário em festa de congado na década de 1900

A história é sempre contada pelos vencedores, quem mantém as rédeas dos registros dos acontecimentos é quem impõe sua versão. A verdade que se apresenta não é necessariamente a que acontece, mas a que se conta sobre ela. A realidade assim é escondida e dá lugar a uma memória inventada. Porém, vez por outra, há um escancaramento de portas e janelas que deixam a luz do sol quente e real entrar trazendo claridade à sala de estar.
Em 24 de dezembro de 2005, em sua edição 32, a revista “a par” trouxe importante matéria revelando que antiga Igreja do Rosário que existia atrás da Matriz São Vicente Férrer, bem em frente ao Colégio Santa Teresinha, não foi demolida em janeiro de 1967 por estar caindo, mas sim porque o vigário da época vendeu suas portas, janelas e santos para um rico empresário do ramo de transporte rodoviário de Londrina, no Paraná, Celso Garcia Cid, falecido em 1972.
Tudo veio à tona quando a redação teve acesso ao livro “O tempo de Seu Celso”, do jornalista Domingos Pellegrini e publicado pela “Gráfica Ipê”, narra a biografia do empresário. Na obra, é relatada toda a negociação da compra com a vinda do empresário paranaense à cidade.
Para que a cidade e a comunidade católica não se revoltasse com a demolição, foi montado um esquema, uma verdadeira a fantasia de que a igreja estava caindo, o que ganhou o boca a boca e ninguém reclamou. Logo quando a revista circulou, muita gente boa, ou quase, se revoltou espalhando que não era verdade. Porém, o tempo passou e tudo se esclareceu. Em outras palavras, as provas vieram à tona.
Desde o fim de 2023, o formiguense Marco Aurélio de Mello Machado, que é professor na Universidade Federal do Paraná, resolveu entrar na questão. Ele entrou em contato com a família e falou com Beatriz Garcia, filha do empresário. Depois de argumentos e explicações, ele ouviu dela: “Após a morte dele [Celso Garcia], minha mãe construiu uma nova sede na fazenda, no ponto mais alto da, lugar escolhido por meu pai. Então as portas de entrada da casa são as que foram compradas da igreja de Formiga. São 8 portas duplas , sendo duas em cada lado da casa. E ficaram lindas na madeira só envernizadas.  E internamente foram usadas mais três portas para entrada dos dormitórios”, contou Beatriz em mensagem a Marco Aurélio.
Dois dos  filhos de Celso Garcia Cid já estão falecidos e um é portador de necessidades especiais. Relembrando da época, ela disse que assim que chegaram ao Paraná, as portas ficaram guardadas num galpão da fazenda. Beatriz continua contando a Marco Aurélio: “Meu pai já havia construído uma capela na fazenda quando comprou as peças na sua [do professor] cidade natal, Formiga. Ela ficava na frente da sede antiga, toda de madeira peroba. Hoje não existe mais, essa parte da fazenda foi vendida pelos herdeiros. Salvei as imagens dos santos Antônio, José e João,  doando-as ao instituto da família, [mantida por] freiras claretianas.  Na época da minha mãe, cheguei a colocar uma das portas na entrada dessa capela”. No livro do biógrafo Pellegrini é relatado que o padre da época achou que se vendesse as imagens dos santos haveria revolta na cidade, mas alguma articulação foi montada e elas também foram vendidas.
“Na minha opinião, nada além de autoritarismo e preconceito temperados com falta de transparência por parte dos padres de Formiga, e, principalmente , do bispo, explicariam a demolição e a venda das peças. Some-se a isso a omissão do prefeito e da sociedade organizada da época. O ano era 1967, período militar, sem muita comunicação ou transparência nas relações entre os poderes, clero incluído, e a sociedade”, comenta Marco Aurélio.
As portas hoje fazem parte da casa-sede da Fazenda Cachoeira 2C da família Garcia. “Continuam lindas e bem cuidadas como meu pai gostaria e sonhou um dia: colocá-las na nova sede, no ponto mais alto da fazenda.  A casa foi construída por minha mãe dez anos após a morte dele. Hoje, tenho a honra juntamente com meus três filhos de cuidar da fazenda Cachoeira 2C”, disse Beatriz. 
O professor Marco Aurélio conta o diálogo que teve com o biógrafo Domingos Pellegrini:   “Conversei bastante com ele. Domingos mora em Londrina e é muito amigo da família do chamado Seo Celso. Ele me garantiu que nas propriedades do empresário a igreja jamais teria sido remontada”.
Em mensagem ao professor formiguense, o biógrafo escreveu: “Lendo os trechos do livro, fica claro que as informações foram a mim transmitidas pelo pecuarista Tourinho de Abreu, parceiro de Seo Celso na segunda importação de gado zebu, que foi autorizada pelo governo por pressão de grandes pecuaristas após a primeira importação feita só por Seo Celso. Tourinho viria a ser sogro do filho mais velho de Seo Celso, o Neco, também já falecido. O que sei é, portanto, o que está no livro, pois era um assunto de passagem e não devo ter visto necessidade de aprofundar - até porque comprar coisas antigas era típico de Seo Celso. Por exemplo, ele trouxe da Índia belos biombos em alto relevo. Na Fazenda Cachoeira dele havia correntes de navio, ele tinha paixão por madeira e antiguidades, era um homem escolarmente ou convencionalmente inculto, mas de fino gosto, seu palacete em Londrina é até hoje uma beleza incomum na cidade.  Em postos de parada da Viação Garcia, ele mandava colocar belos balcões de madeira. Parecia ter predileção por arte sacra, certamente sem qualquer intenção de lucrar com isso, ao contrário, me pareceu em toda a pesquisa que fiz com muitas entrevistas, que seu interesse era sempre manter, cuidar e preservar.  Teria ele sabido que a igreja estava à venda pelo padre e/ou bispo? Ou eles, sabendo da fama dele de comprador desse tipo de coisa, o procuraram? Pra deslindar isso seria preciso ouvir o padre, o bispo e Seo Celso, todos falecidos... Porém, se a cidade formar comissão representativa para questionar a família, identificar as peças e solicitar devolução, creio que seria atendida civilizadamente, e me disponho a intermediar isso. Mas me pergunto se isso não seria mau pros dois lados, a relembrar o descaso da cidade naquele tempo e a obsessão sacra de Seo Celso. Creio que o que fica mesmo é a lição de que é preciso preservar, usar e assim valorizar patrimônio histórico. Mas desconfio que isso só valerá a pena se for pra reconstruir a igreja inteira ou colocar essas peças condigmanente em um museu”. 
Há cerca de três meses, a filha Beatriz enviou duas fotos do que seriam as portas devidamente montadas e  instaladas na Fazenda Cachoeira 2. Segundo o professor e ex-sineiro do Rosário Jorge Zaidan, as fotos são das janelas da igreja. Ele contou que, por serem muito grandes, as janelas foram transformadas em portas internas. “Não há dúvidas de que são elas. Iguaizinhas como eram no meu tempo.”
Outro professor formiguense, Isaac Cassemiro Ribeiro, explicou que o que ocorreu em Formiga foi o mesmo que em cidades como Machado e Divinópolis. Doutor pela UFMG e pela Universidade de Lisboa, Portugal, ele contou que o ocorrido em Formiga “foi puro racismo religioso”. “Esse negócio de tirar os negros que dançavam congado do Centro da cidade e colocar na periferia foi muito mais comum do que se pensa. Felizmente, em Formiga, as coisas estão ficando às claras e é chegado o momento de as autoridades, principalmente o Poder Executivo, acionarem o Ministério Público na questão do patrimônio histórico e reaver as peças, sejam as portas e janelas como também as imagens sacras”.
Já uma advogada moradora das imediações da Igreja Matriz São Vicente Férrer relatou que em uma casa de um empresário do ramo de prestação de serviços em Belo Horizonte, no Bairro da Serra, ela viu o balaustrado que seria da Igreja do Rosário montado em uma sala. Balaustrado é aquela espécie de “cerquinha” de madeira que divide o altar mor dos bancos dos fiéis. “Foi há muitos anos, mas estava lá. Bem me lembro dos comentários. Esse empresário já faleceu e eu não sei mais se a residência ainda pertence à família”, contou a advogada que pediu que seu nome não fosse revelado.
Outro professor formiguense que promete estar junto caso a cidade se mobilize na questão de recuperar as peças históricas é Luiz Antônio Cruz Souza. Atualmente, cursando o seu segundo pós-doutorado em Évora, Portugal, e em Los Angeles, nos Estados Unidos, ele trabalha na área de artes e ciências da conservação e restauração de bens culturais e foi diretor da escola de Belas Artes de UFMG. “Depois das revelações, é chegado o momento de Formiga se unir e de o poder público da cidade tomar providências. Eu trabalho muito com o Doutor Marcelo Maffra, uma pessoa muito séria, inteligente e comprometida, que é o procurador chefe da Coordenadoria Estadual de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico do Ministério Público Estadual. Sugiro que alguma pessoa física ou jurídica da comunidade efetue o registro do patrimônio desaparecido, no caso, das portas, janelas e santos da Igreja de Nossa Senhora do Rosário. É o início”.

Das duas fotos principais - As portas e janelas da Igreja do Rosário de formiga estão montadas na Fazenda Cachoeira 2 em Londrina, Paraná

Quem é o pesquisador e professor Marco Aurélio de Mello Machado 

O professor formiguense Marco Aurélio de Mello Machado é filho da pianista e professora e do representante comercial José Machado dos Reis. É formado pela Escola Superior de Agricultura de Lavras, hoje UFLA, com mestrado pela Universidade Federal de Viçosa. Entre 1993 e 1996 lecionou na Universidade do Tocantins, UFV e UFMG. Desde então é professor da Universidade Federal do Paraná. É colaborador do diário “O Pergaminho” há mais de 30 anos e da revista “a par” desde sua fundação, sempre pesquisando e contextualizando Formiga dentro das transformações sociais.

| HISTÓRIA |

Nesta edição, como registro histórico, a revista “a par” republica a matéria original sobre a venda da igreja (Matéria publicada originalmente dia 24 de dezembro de 2005)

A misteriosa história da demolição da Igreja do Rosário