E se as chuvas do Sul caissem sobre Formiga?
Por Marco Aurélio de Mello Machado
Nas últimas semanas fomos tomados pelo horror e consternação diante da extensão dos danos provocados pelas chuvas que assolaram grande parte do Rio Grande Sul. No momento em que esse texto é escrito o RS contabilizava 162 mortos, 75 desaparecidos, 806 feridos, 467 municípios afetados, mais de 68 mil desabrigados e perto de 600 mil desalojados (https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2024/05/defesa-civil-confirma-mais-uma-morte-e-tragedia-do-rs-ja-totaliza-162-obitos.shtml). Números de guerra!
Não foi o desastre ambiental que mais matou no país. Em 2011 tivemos deslizamentos de encostas em Angra dos Reis e Niterói, no Rio de Janeiro, que ceifaram mais de mil vidas. Contudo, a tragédia no sul do país foi a que causou as maiores enchentes e alagamentos em áreas urbanas, não só em termos espaciais como também em perdas materiais.
De acordo com o Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais), em somente nove dias (26/04 a 04/05) os maiores volumes de chuvas ocorreram nos municípios gaúchos de Fontoura Xavier (740 mm), Nova Palma (630 mm) e Alto Feliz (610 mm). É bom lembrar que 1 mm (milímetro) representa o despejo de 1 litro de água em somente 1 metro quadrado.
Diante desse quadro dantesco vivido pelos irmãos sulistas, alguns questionamentos se impõem sobre Formiga, levando-se em conta que a cidade possui dois rios urbanos: e se esses elevados volumes de água precipitassem sobre nossa cidade? Qual o grau de resiliência, resistência e adaptação que Formiga e os formiguenses possuem caso uma chuva dessa magnitude ocorra?
Historicamente, Formiga sempre teve que conviver com enchentes e inundações, em especial no centro, como em 1947, 1950, 1966 e nas décadas de 1970 e 1980. Tais ocorrências tem causas conhecidas e consequências imprevisíveis. Uma das causas, histórica, foi a mudança, a fórceps, do traçado do rio Formiga, que outrora passava pela Rua Quintino Bocaiúva. Em 1872, houve a decisão pela mudança, o que ocorreu em 1879.
Uma das maiores enchentes, registrada, ocorrida no centro de Formiga, foi a de 17 de dezembro de 2008 (foto ao lado).
A ocorrência de chuvaradas, bem como suas possíveis consequências tem múltiplos fatores causais. Existem os ligados à circulação atmosférica adjacente à mesorregião, como os eventos El Niño e La Niña, dentre outros mecanismos de meso e grande escala e, no caso das inundações, a capacidade de os solos reservarem as águas excedentes. Na contramão dessa reservação estão a impermeabilização das superfícies e o seu conteúdo de água prévio, a partir do qual o volume de solo não consegue mais suportar o excedente hídrico.
Tomando-se como exemplo a chuva ocorrida em Formiga em dezembro de 2008, e utilizando dados de 18 anos (2007 a 2024) da estação meteorológica do INMET, instalada no campus do Unifor-MG, observa-se que nos 30 dias de novembro daquele ano choveram 163 mm. Nesse intervalo, não se teve mais que dois dias consecutivos sem chuvas. Nos 16 primeiros dias de dezembro, um dia antes da inundação do centro, choveram 251 mm. Em todo o mês de dezembro foram 536 mm, sendo a média para o mês de 268 mm. Nos meses seguintes foram 253 mm em janeiro (média de 271 mm) e 241 mm em fevereiro (média de 140 mm). São meses de verão. Mesmo levando-se em conta a alta sazonalidade das chuvas em Formiga, na qual, em média, cerca de 78% das chuvas ocorrem no verão, é uma quantidade extraordinária.
Outro fator que deve ser levado em consideração é a intensidade de chuva, em especial aquela que precipita em somente um dia. Avaliando os mesmos dados, vê-se que em todos os meses do ano ocorreram chuvas diárias intensas, à exceção de julho e agosto. Contudo, as chuvas máximas diárias são condição necessária, mas não suficiente para inundações e enchentes. Outros fatores importam, como a forma da bacia que abriga os rios urbanos, o uso e ocupação das margens dos rios, em especial no seu trecho urbano, a topografia da nascente ao desague, a sinuosidade, o assoreamento das calhas dos rios, e, como afirmado, o conteúdo prévio de água nos solos, a partir do momento em que as mais volumosas e/ou mais persistentes precipitações começam a ocorrer.
A fragilidade de Formiga frente às intempéries climáticas, em especial as chuvas, é tão gritante que mesmo com chuvas pouco volumosas, alguns transtornos são esperados. Em novembro passado o acumulado de chuvas no mês foi de 135 mm. Em dezembro, 39 mm e em janeiro, 23 mm (estes, precipitaram ao longo de somente sete dias). Mesmo assim, tivemos inundações e enchentes em diversos pontos do centro, o que levou a Prefeitura a decretar estado de emergência (https://g1.globo.com/mg/centro-oeste/noticia/2024/01/20/apos-chuva-forte-causar-estragos-em-formiga-prefeitura-decreta-situacao-de-emergencia.ghtml).
Diante dessa profusão de dados e informações, uma pergunta se impõe: e se as chuvas que causaram tantos danos no RS precipitassem sobre Formiga? Quais seriam os impactos na cidade?
As chuvas de 2008 levaram a um extravasamento das águas, em especial do rio Formiga, da ordem de cinco metros. Dezesseis anos separam esse evento dos dias de hoje. Se as chuvas mudaram, em intensidade e frequência, as condições de pavimentação da cidade, se não se mantiveram iguais, possivelmente pioraram, ficando menos permeáveis.
Embora as relações ambientais não respondem em termos lineares, possivelmente chuvas com o dobro do volume daquele de 2008, como as observadas no RS em 2024, poderiam fazer os rios de Formiga se elevarem por dezenas de metros, duas ou três vezes mais do que em 2008. Uma vez que não possui uma bola de cristal, a ciência climatológica trabalha com o estabelecimento de cenários futuros, desde os mais otimistas até os catastróficos, no intuito de testar as forças de adaptação e resiliência de sistemas submetidos a impactos. No caso de Formiga, diante do hipotético quadro, certamente a microbacia inundável abrangeria desde a calha do rio, indo até a Praça Getúlio Vargas e ruas próximas, indo, por um lado até a Escola Rodolfo Almeida, incluindo a sede da Prefeitura e a rua Gonçalves D´Amarante, até o terminal rodoviário. Na confluência dos rios Formiga e Mata Cavalo, a cinética de ambos levaria a inundar toda a parte baixa do bairro Santo Antônio, além da área plana inundável da Vargem Grande. E, em outra direção, iriam até próximo à Praça Ferreira Pires, a despeito de pequenas diferenças topográficas que seriam facilmente vencidas pelo avanço das águas. Sob essa condição, possivelmente, o número de desabrigados e desalojados não fosse desesperador, mas as perdas materiais, para o comércio e a infraestrutura pública seria algo jamais visto.
Se o futuro é incerto, a nós cabe, no presente, prepararmos para as incertezas. Parece claro que estamos em um processo de intensas perturbações do sistema climático. Ignorar isso é tratar de maneira irresponsável o ambiente que deixaremos para as próximas gerações. Para além dos convenientes discursos negacionistas sobre mudanças climáticas, que servem somente para cativar parcelas da população a um ideário político, não há o que negar quanto às relações entre eventos extremos e mudanças climáticas, em uma relação causa-efeito. Essa recusa é a negação de evidências que se amontoam diariamente, em diversas partes do mundo. Recusar a enxergar o óbvio, é expressão maior da estupidez e não nos fará melhor no enfrentamento das consequências dessas mudanças.
Em Formiga mesmo, quer se analise as chuvas, como visto, ou as temperaturas, o quadro é preocupante. Há somente oito meses, em 25 de setembro passado, Formiga experimentou o dia mais quente dos últimos 17 anos: 37,6°C! As quatro mais altas temperaturas nesse período ocorreram em 2014 (37,2°C) e duas mais recentes, em 13 e 14 de novembro (36,4°C e 36,7°C, respectivamente). Durante oito dias consecutivos (12 a 19 de novembro), as temperaturas máximas foram sempre superiores a 35,5°C. Nos 12 primeiros anos da série (2007 a 2018) a temperatura média evoluiu de 21,4°C para 22,1°C. Já as mínimas absolutas saltaram de 5,7°C para inacreditáveis 9,1°C. A conclusão é tão óbvia quanto preocupante: Formiga está muito mais quente nos últimos 5 anos em comparação com os 12 anos anteriores.
Nesse ponto, resta-nos pensar o que fazer. E olhar para o lado para ver com quem podemos contar. Qual o papel dos poderes constituídos, especialmente do Executivo, perante o que se prenuncia como uma crise climática? O governo Bolsonaro teve atitudes omissas e criminosas na área ambiental (https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2024/05/sob-bolsonaro-brasil-afrouxou-regras-para-construir-na-margem-de-rios-e-lagos-entenda-a-legislacao.shtml). O atual governo, a par de suas boas intenções, tem sido lento na implementação de leis e ações nesse sentido (https://www.bbc.com/portuguese/articles/cp00l8d5p4po).
Formiga, como qualquer cidade de porte médio, precisa se preparar para um presente e futuro em que a crise climática é a realidade e não uma possibilidade. Trilhar por esse caminho seria auspicioso até pelo ineditismo dentre cidades de mesmo porte. Precisamos de leis e regulamentos que protejam e preservem os ambientes (urbano e periurbano) e as pessoas, em especial para aquelas social e economicamente em risco. Precisamos, urgente, de um plano de ações para enfrentamento de impactos do clima.
É uma dádiva contarmos com guarnição do Corpo de Bombeiros em solo formiguense, cujas ações representam a diferença entre a vida e a morte. Contudo, a partir de determinado grau de impacto os valorosos bombeiros atuam bravamente para minorar o sofrimento e encaminhar atingidos. O que não é pouco, mas poderia ser menos danoso se tivermos agora a sabedoria e o discernimento da prevenção que o presente exige e o futuro irá nos cobrar. E o futuro climático pode ser a próxima semana, ou o próximo mês.
Infelizmente, à medida que os eventos se avolumam, nossos dirigentes pouco ou nada fazem. A equipagem e o fortalecimento das estruturas públicas de apoio às questões ambientais e climáticas em Formiga é claramente insuficiente. Um olhar na Lei Orçamentária Anual de 2024 indica que, para um orçamento municipal de R$343 milhões, houve a previsão de destinação de somente 3% para Gestão Ambiental, que lida com temas díspares como educação ambiental, recuperação de áreas degradadas, recursos hídricos, revitalização de margens de rios, dentre tantos outros.
Ao direcionarmos nossas preocupações para Formiga, a máxima que diz para pensarmos globalmente, mas agirmos localmente, nunca fez tanto sentido.
Costumo dizer que nossa memória climática é altamente volátil. Lamentamos hoje o que vamos esquecer amanhã. Só não esquece quem perdeu o que de mais precioso existe para um ser humano e para os quais é impossível recuperar: os entes queridos, a saúde e o tempo.
Marco Aurélio de Mello Machado é professor de Climatologia