Gal Costa foi a gata que, há 30 anos, fez a caretice 'subir no telhado' com show moderno, arrojado e teatral
Estreado em 3 de março de 1994 sob aplausos e vaias direcionadas ao encenador Gerald Thomas, o show ‘O sorriso do gato de Alice’ permanece como um dos grandes trabalhos da carreira da cantora. ♪ MEMÓRIA – O espírito transgressor de Gal Costa (26 de setembro 1945 – 9 de novembro de 2022) baixou em cena muitas vezes ao longo dos 58 anos de carreira iniciada em Salvador (BA) em 1964 e impulsionada no Rio de Janeiro (RJ) a partir de 1967. Mas nunca esse espírito vanguardista assustou tanto os caretas como na estreia do show O sorriso do gato de Alice em 3 de março de 1994 na casa Imperator, no Rio de Janeiro (RJ). Há exatos 30 anos, sob a direção do controvertido encenador carioca Gerald Thomas, a cantora personificou a gata que fez o conservadorismo subir no telhado. Tamanha ousadia desafinou o coro dos que geralmente ficam (ou se fingem) contentes ao fim de estreias badaladas de estrelas da MPB. “Assassino! Assassino!”, gritou o produtor e compositor Ezequiel Neves (1935 – 2010) – fora de sintonia com a postura habitualmente libertária que sempre adotara no ofício de jornalista e crítico musical – quando Gerald subiu ao palco do Imperator ao fim da apresentação. Vaias e aplausos foram ouvidos simultaneamente na plateia naquele momento. O alvo das vaias não era Gal, mas, sim, Gerald Thomas, o diretor que criara show de concepção teatral, modernista, desafiando os padrões cênicos vigentes na MPB. Até a crítica musical (sobretudo a carioca), geralmente receptiva a inovações, se mostrou provinciana e falou mal do show porque queria atacar Gerald – com a ressalva de que este critico e colunista do g1 foi voz dissonante, elogiando o show O sorriso do gato de Alice em crítica publicada na edição de 5 de março do jornal O Globo com o título “A graça de ser louca e ousada”. Analisado em perspectiva, 30 anos após a estreia nacional no Rio, o show O sorriso do gato de Alice permanece como um dos momentos mais arrojados, cintilantes e inovadores da trajetória artística de Gal, cantora que estava no auge da força vocal. A sofisticação da cenografia e da iluminação embelezou cena que alternava climas em atmosfera teatral. Os peitos de fora da cantora, expostos no verso “Brasil, mostra a tua cara”, do rock-samba Brasil (George Israel, Nilo Romero e Cazuza, 1988), permaneceram à mostra em Tropicália (Caetano Veloso, 1967), chocaram parte do público e foram parar nas primeiras páginas de todos os jornais. Contudo, o que incomodou mesmo os caretas da elite cultural foi a estética teatral da primeira parte do espetáculo, sobretudo a opção do diretor Gerald Thomas por esconder os músicos da banda – regida pelo diretor musical e violoncelista Jaques Morelenbaum – atrás de uma tela nesse momento inicial. Era teatro, encenação, mas a classe musical reagiu mal. Quem tinha olhos e ouvidos mais abertos para (r)evoluções cênicas aplaudiu quando Gal surgiu no palco movendo-se por um telhado cenográfico, personificando a gata. Ao som de Liebestod (Richard Wagner), música da ópera Tristão & Isolda (1859), toda uma ambiência teatral era construída enquanto Gal começava a seguir roteiro que incluiu citação de Dê um rolê (Moraes Moreira e Luiz Galvão, 1971), a lembrança de Solitude (Duke Ellignton, Eddie DeLange e Irving Mills, 1934, em versão de Augusto de Campos, 1977), o canto do fado Não é desgraça ser pobre (Norberto de Araújo, 1953) – standard do repertório da cantora portuguesa Amália Rodrigues (1920 – 1999) – e o samba Quando bate uma saudade (Paulinho da Viola, 1989). No canto deste samba, a tela à frente dos músicos subia, revelando e iluminando a banda, em número inebriante. Nessa primeira parte, o show se descolava do repertório do álbum O sorriso do gato de Alice, lançado em outubro de 1993 com repertório que trazia somente músicas inéditas de Caetano Veloso, Djavan, Gilberto Gil e Jorge Ben Jor. Com produção musical de Arto Lindsay, o disco já soou refinado. Sob a batuta de Gerald Thomas, Gal expandiu esse refinamento para a cena e cantou algumas músicas do álbum na segunda parte do show, como Errática (Caetano Veloso, 1993). Essa segunda parte já tinha molde mais convencional por opção de Gal (na concepção do diretor Gerald Thomas, ela seria tão inovadora quanto a primeira). E foi nessa segunda parte que Gal fez alterações no roteiro a partir da segunda semana da temporada carioca do show para se afinar com o gosto do público. Entraram Meu bem, meu mal (Caetano Veloso, 1981), Vaca profana (Caetano Veloso, 1984) e Revolta Olodum (José Olissan e Domingos Sérgio, 1989). Em contrapartida, saíram Alkahool (Jorge Ben Jor, 1993) e Nuvem negra (Djavan, 1993), músicas que não haviam surtido efeito na estreia. Outras alterações no roteiro foram sendo feitas na medida em que o show seguiu em turnê por outras cidades do Brasil. Contudo, justiça seja feita, Gal teve peito de manter inalterada – durante toda a turnê – a estética revolucionária da primeira parte do show O sorriso do gato de Alice. Decorridos 30 anos, o espe
Estreado em 3 de março de 1994 sob aplausos e vaias direcionadas ao encenador Gerald Thomas, o show ‘O sorriso do gato de Alice’ permanece como um dos grandes trabalhos da carreira da cantora. ♪ MEMÓRIA – O espírito transgressor de Gal Costa (26 de setembro 1945 – 9 de novembro de 2022) baixou em cena muitas vezes ao longo dos 58 anos de carreira iniciada em Salvador (BA) em 1964 e impulsionada no Rio de Janeiro (RJ) a partir de 1967. Mas nunca esse espírito vanguardista assustou tanto os caretas como na estreia do show O sorriso do gato de Alice em 3 de março de 1994 na casa Imperator, no Rio de Janeiro (RJ). Há exatos 30 anos, sob a direção do controvertido encenador carioca Gerald Thomas, a cantora personificou a gata que fez o conservadorismo subir no telhado. Tamanha ousadia desafinou o coro dos que geralmente ficam (ou se fingem) contentes ao fim de estreias badaladas de estrelas da MPB. “Assassino! Assassino!”, gritou o produtor e compositor Ezequiel Neves (1935 – 2010) – fora de sintonia com a postura habitualmente libertária que sempre adotara no ofício de jornalista e crítico musical – quando Gerald subiu ao palco do Imperator ao fim da apresentação. Vaias e aplausos foram ouvidos simultaneamente na plateia naquele momento. O alvo das vaias não era Gal, mas, sim, Gerald Thomas, o diretor que criara show de concepção teatral, modernista, desafiando os padrões cênicos vigentes na MPB. Até a crítica musical (sobretudo a carioca), geralmente receptiva a inovações, se mostrou provinciana e falou mal do show porque queria atacar Gerald – com a ressalva de que este critico e colunista do g1 foi voz dissonante, elogiando o show O sorriso do gato de Alice em crítica publicada na edição de 5 de março do jornal O Globo com o título “A graça de ser louca e ousada”. Analisado em perspectiva, 30 anos após a estreia nacional no Rio, o show O sorriso do gato de Alice permanece como um dos momentos mais arrojados, cintilantes e inovadores da trajetória artística de Gal, cantora que estava no auge da força vocal. A sofisticação da cenografia e da iluminação embelezou cena que alternava climas em atmosfera teatral. Os peitos de fora da cantora, expostos no verso “Brasil, mostra a tua cara”, do rock-samba Brasil (George Israel, Nilo Romero e Cazuza, 1988), permaneceram à mostra em Tropicália (Caetano Veloso, 1967), chocaram parte do público e foram parar nas primeiras páginas de todos os jornais. Contudo, o que incomodou mesmo os caretas da elite cultural foi a estética teatral da primeira parte do espetáculo, sobretudo a opção do diretor Gerald Thomas por esconder os músicos da banda – regida pelo diretor musical e violoncelista Jaques Morelenbaum – atrás de uma tela nesse momento inicial. Era teatro, encenação, mas a classe musical reagiu mal. Quem tinha olhos e ouvidos mais abertos para (r)evoluções cênicas aplaudiu quando Gal surgiu no palco movendo-se por um telhado cenográfico, personificando a gata. Ao som de Liebestod (Richard Wagner), música da ópera Tristão & Isolda (1859), toda uma ambiência teatral era construída enquanto Gal começava a seguir roteiro que incluiu citação de Dê um rolê (Moraes Moreira e Luiz Galvão, 1971), a lembrança de Solitude (Duke Ellignton, Eddie DeLange e Irving Mills, 1934, em versão de Augusto de Campos, 1977), o canto do fado Não é desgraça ser pobre (Norberto de Araújo, 1953) – standard do repertório da cantora portuguesa Amália Rodrigues (1920 – 1999) – e o samba Quando bate uma saudade (Paulinho da Viola, 1989). No canto deste samba, a tela à frente dos músicos subia, revelando e iluminando a banda, em número inebriante. Nessa primeira parte, o show se descolava do repertório do álbum O sorriso do gato de Alice, lançado em outubro de 1993 com repertório que trazia somente músicas inéditas de Caetano Veloso, Djavan, Gilberto Gil e Jorge Ben Jor. Com produção musical de Arto Lindsay, o disco já soou refinado. Sob a batuta de Gerald Thomas, Gal expandiu esse refinamento para a cena e cantou algumas músicas do álbum na segunda parte do show, como Errática (Caetano Veloso, 1993). Essa segunda parte já tinha molde mais convencional por opção de Gal (na concepção do diretor Gerald Thomas, ela seria tão inovadora quanto a primeira). E foi nessa segunda parte que Gal fez alterações no roteiro a partir da segunda semana da temporada carioca do show para se afinar com o gosto do público. Entraram Meu bem, meu mal (Caetano Veloso, 1981), Vaca profana (Caetano Veloso, 1984) e Revolta Olodum (José Olissan e Domingos Sérgio, 1989). Em contrapartida, saíram Alkahool (Jorge Ben Jor, 1993) e Nuvem negra (Djavan, 1993), músicas que não haviam surtido efeito na estreia. Outras alterações no roteiro foram sendo feitas na medida em que o show seguiu em turnê por outras cidades do Brasil. Contudo, justiça seja feita, Gal teve peito de manter inalterada – durante toda a turnê – a estética revolucionária da primeira parte do show O sorriso do gato de Alice. Decorridos 30 anos, o espetáculo sobrevive na memória como um dos grandes momentos de Gal Costa enquanto as críticas rancorosas se apequenaram ao longo do tempo pelo alto teor de parcialidade. Gerald Thomas seguiu provocador e controverso. Já Gal alternaria altos e baixos na carreira até ser reconduzida ao pódio por Caetano Veloso, mentor do revigorante álbum Recanto (2011). Entre tanta polêmica, sorriu melhor quem sorriu por último e, sem se deixar contagiar pelo calor do momento, reconheceu a modernidade da gata na cena brasileira de 1994.