Infância (infância?)
Por Antônio Damasceno (de Formiga/MG)
Estou num avarandado espaçoso, numa casa bonita à beira do imenso Lago de Furnas ao entardecer. A passarada voltando aos seus ninhais, o horizonte incandescido. Lembro-me de mim, dos morros, dos trilhos, da casinha à beira do córrego muito limpo, do povoado da Paroba muito pobre onde nasci. Dali, logo me levaram embora, pra Vargem Grande, lugar menos longe da cidade. E deste lugar para a cidade, outro mundo para o menino da roça, onde hoje estou.
Tantos anos passados, trago comigo as marcas das tristezas e pequenas alegrias vividas naqueles mundos antigos: a Paroba e a Vargem Grande (Varge Grande, dita).
Da Paroba a memória me devolve o garotinho esperto indo e vindo da casa da Vó, que fazia os biscoitos fritos inesquecíveis para este neto adorado. Mais tarde, o menino sujo e apressado, com a enxada nas costas e o caldeirãozinho pendurado, indo e vindo apressado pelo trilho: o cafezal para capinar sozinho, a volta, a escuridão, a cruz à beira do caminho, o medo.
Da “Varge Grande” me lembro da despedida do meu pai morto aos trinta e dois anos; do córrego com muitos poços onde a gente nadava e pescava; da gatinha raquítica e manhosa, do Duque, meu cachorro fiel correndo comigo pelos pastos. Da liberdade. Lembro-me da casa de pau-a-pique barreada, do moinho de fazer fubá girando, girando, da cachoeira com sua música eterna.
O tempo passou. Fui embora daquele esquecido mundo rural e do menino que fui. Mas aqueles lugares nunca foram embora de mim.
Vou indo com a enxadinha nas costas, o caldeirãozinho no cabo, cumprindo a sina de ter de tornar-me adulto antes do tempo. Depois a panha do café, o carro de boi e eu criança aprendendo a ser candieiro com o carreiro Zé do Tio. A volta pra casinha barreada de pau-a-pique. A escola da roça, longe, longe. Menino sem pai, apanhando dos colegas pelos caminhos, sem ter pra quem contar.
Depois, menino empregado de fazenda, levantando com o cantar do galo, com o gelo das madrugadas. Pegar o cavalo, levar o leite pra cidade, para onde acabei indo: engraxar sapatos na praça, vender frutas pelas ruas e pegar malas no trem. E um emprego salvador.
Voltei à Paroba dias atrás, sessenta e tantos anos depois. Não deveria ter feito isso. Tudo virou pastagens e florestas de eucaliptos. Do alto, tentei adivinhar onde ficava a nossa casinha lá no pé do morro, mas não existem mais sinais dela; nem da casa grande da minha avó paterna tão querida. Tudo virou floresta. Sumiram os trilhos, o corregozinho de água limpa e o cafezal do outro lado.
Fui embora dali há tantos anos, espremido feito berne para sobreviver. Tantas guerras, muitas vezes vencedor (até porque estou vivo) e às vezes vencido. A vida ficou me devendo, pelo menos em parte, uma infância. Da casinha de pau-a-pique barreada tenho um quadro na parede. Plagiando Drummond: “Mas como dói!”
A passarada já se foi. A noite desceu sobre o Lago de Furnas.
E eu confesso que sobrevivi!
P. S. Escrito para José Orosimbo Damasceno, “Zé do Tio,” que um dia me ensinou a ser candieiro.