Miriam Batucada tem a alma exumada, 30 anos após a morte, em biografia que expõe as alegrias e tristezas da artista
Capa do livro ‘A história incompleta de Miriam Batucada’, de Ricardo Santhiago Divulgação Resenha de livro Título: A história incompleta de Miriam Batucada Autor: Ricardo Santhiago Edição: Popessuara Cotação: ★ ★ ★ ★ ★ ♪ Lançamento agendado para as 16 de hoje, 22 de junho, no espaço Queerioca, no centro da cidade do Rio de Janeiro (RJ). ♪ Quando o corpo já em decomposição de Miriam Batucada foi retirado por legistas do apartamento onde a artista paulistana vivia em profunda solidão na cidade de São Paulo, o relógio marcava 17h20m do dia 21 de julho de 1994. Pelo deteriorado estado do corpo, ficou presumido que a cantora, compositora e ritmista morrera cerca de três semanas antes, em 2 de julho. Mas nunca foi possível determinar o dia exato em que Miriam Ângela Lavecchia saiu de cena, 47 anos e seis meses após ter nascido em 28 de dezembro de 1946. Historiador paulistano nascido em 1983 no mesmo bairro da Mooca em que Miriam veio ao mundo, se criou e ao qual ficou associada, Ricardo Santhiago revela tudo o que foi possível apurar na biografia A história incompleta de Miriam Batucada, livro que já se inclui instantaneamente entre os títulos realmente relevantes da bibliografia musical brasileira. Produzida entre 2018 e 2023 e prefaciada por Pedro Alexandre Sanches, grife no jornalismo musical, a biografia é importante porque Santhiago exuma a vida, a obra e a alma de uma artista que, 30 anos após a morte em decorrência de infarto, permanecia esquecida, injustamente relegada a uma nota de rodapé na história da música do Brasil. A partir do acervo franqueado ao autor pela irmã de Miriam, Mirna Lavecchia, principal entrevistada do livro e personagem fundamental na história da irmã, Ricardo Santhiago pesquisou e investigou a trajetória da biografada para apresentar, ao longo de 376 páginas, narrativa consistente de sambista lésbica, de sotaque italianado e temperamento ciclotímico, possivelmente bipolar. Esse traço bipolar apareceu forte já na infância, quando, ainda bebê, a pequena Miriam – xodó da família – ora abria o berreiro ora parecia encarnar alegria festeira. A partir de 1966, ano em que foi revelada em escala nacional no programa do apresentador Blota Jr. (1920 – 1999) ao se apresentar na atração da TV Record com mix de talento e deboche, Miriam virou Batucada pela habilidade de percutir uma mão na outra. Antes, aprendeu a tocar acordeom, instrumento popular nos anos 1950 antes de ser destronado pelo violão da geração bossa nova. A propósito, Miriam começou a tocar violão aos 16 anos. Aos 17, virou batuqueira com as próprias mãos. Miriam Batucada tinha a bossa dos sambistas dos breques pré-bossa. Entre um breque e outro dos sambas que cantava com estilo peculiar, dando preferência ao repertório autoral, a artista foi se soltando das amarras familiares – na qual permaneceu enredada até os vinte e poucos anos – até alçar voo pessoal. Profissionalmente, Miriam Batucada já era uma estrela em 1967, ano em que foi reconhecida oficialmente como instrumentista pela Ordem dos Músicos do Brasil. Fazia shows – como o Samba da Garoa, estreado em 27 de março de 1967 com gente já famosa como Caetano Veloso, Chico Buarque e Maria Bethânia na plateia – e trabalhava na TV Record. Naquele momento, ninguém poderia supor que a estrela se apagaria aos poucos, embora fagulhas desse brilho tenham iluminado o caminho de Miriam ao longo da década de 1970. Ricardo Santhiago mostra como as oscilações de humor e o temperamento forte da artista contribuíram para que Miriam Batucada logo fosse empurrada para a margem do mercado ao mesmo tempo em que a vivência homossexual começou a gerar problemas de relacionamento com a família, sobretudo com a irmã, Mirna. “Hoje está tudo certo. [...] Mas eu não estou falando do agora. Eu estou falando dos anos 60! Era tabu. A cabeça era outra. [...] Eu sou de uma geração muito retrógrada”, argumenta Mirna, sob perspectiva, em depoimento ao biógrafo de Miriam. Sem turma e sem pertencer a um movimento, Miriam Batucada foi ficando sozinha, pagando preço alto pela liberdade artística e pessoal. E, por essa liberdade, a artista pediu demissão da TV Record para ir para o Rio de Janeiro (RJ) morar com Flamínia, jornalista dona do coração de Miriam. Só que Flamínia nega qualquer envolvimento afetivo com Miriam – fato sustentado por Ricardo Santhiago, que dedica várias páginas do livro à vida em comum das duas mulheres, escorado em depoimentos de quem conviveu com o casal, como Ruddy Pinho. Amigos e conhecidos também sustentam na biografia, em depoimentos dados sob a condição do anonimato, que a derrocada existencial de Miriam teria começado quando Flamínia a teria deixado para viver com Tania, amiga em comum das duas. Fato que ninguém contesta é a existência do cultuado disco coletivo Sociedade da Grã-Ordem Kavernista apresenta Sessão das 10, gravado em 1971 por Miriam com Edy Star, Raul Seixas (1945 – 1989) e Sérgio Sampaio (1947 – 1994). Assunto do capítulo Numa patota inconsequente,
Capa do livro ‘A história incompleta de Miriam Batucada’, de Ricardo Santhiago Divulgação Resenha de livro Título: A história incompleta de Miriam Batucada Autor: Ricardo Santhiago Edição: Popessuara Cotação: ★ ★ ★ ★ ★ ♪ Lançamento agendado para as 16 de hoje, 22 de junho, no espaço Queerioca, no centro da cidade do Rio de Janeiro (RJ). ♪ Quando o corpo já em decomposição de Miriam Batucada foi retirado por legistas do apartamento onde a artista paulistana vivia em profunda solidão na cidade de São Paulo, o relógio marcava 17h20m do dia 21 de julho de 1994. Pelo deteriorado estado do corpo, ficou presumido que a cantora, compositora e ritmista morrera cerca de três semanas antes, em 2 de julho. Mas nunca foi possível determinar o dia exato em que Miriam Ângela Lavecchia saiu de cena, 47 anos e seis meses após ter nascido em 28 de dezembro de 1946. Historiador paulistano nascido em 1983 no mesmo bairro da Mooca em que Miriam veio ao mundo, se criou e ao qual ficou associada, Ricardo Santhiago revela tudo o que foi possível apurar na biografia A história incompleta de Miriam Batucada, livro que já se inclui instantaneamente entre os títulos realmente relevantes da bibliografia musical brasileira. Produzida entre 2018 e 2023 e prefaciada por Pedro Alexandre Sanches, grife no jornalismo musical, a biografia é importante porque Santhiago exuma a vida, a obra e a alma de uma artista que, 30 anos após a morte em decorrência de infarto, permanecia esquecida, injustamente relegada a uma nota de rodapé na história da música do Brasil. A partir do acervo franqueado ao autor pela irmã de Miriam, Mirna Lavecchia, principal entrevistada do livro e personagem fundamental na história da irmã, Ricardo Santhiago pesquisou e investigou a trajetória da biografada para apresentar, ao longo de 376 páginas, narrativa consistente de sambista lésbica, de sotaque italianado e temperamento ciclotímico, possivelmente bipolar. Esse traço bipolar apareceu forte já na infância, quando, ainda bebê, a pequena Miriam – xodó da família – ora abria o berreiro ora parecia encarnar alegria festeira. A partir de 1966, ano em que foi revelada em escala nacional no programa do apresentador Blota Jr. (1920 – 1999) ao se apresentar na atração da TV Record com mix de talento e deboche, Miriam virou Batucada pela habilidade de percutir uma mão na outra. Antes, aprendeu a tocar acordeom, instrumento popular nos anos 1950 antes de ser destronado pelo violão da geração bossa nova. A propósito, Miriam começou a tocar violão aos 16 anos. Aos 17, virou batuqueira com as próprias mãos. Miriam Batucada tinha a bossa dos sambistas dos breques pré-bossa. Entre um breque e outro dos sambas que cantava com estilo peculiar, dando preferência ao repertório autoral, a artista foi se soltando das amarras familiares – na qual permaneceu enredada até os vinte e poucos anos – até alçar voo pessoal. Profissionalmente, Miriam Batucada já era uma estrela em 1967, ano em que foi reconhecida oficialmente como instrumentista pela Ordem dos Músicos do Brasil. Fazia shows – como o Samba da Garoa, estreado em 27 de março de 1967 com gente já famosa como Caetano Veloso, Chico Buarque e Maria Bethânia na plateia – e trabalhava na TV Record. Naquele momento, ninguém poderia supor que a estrela se apagaria aos poucos, embora fagulhas desse brilho tenham iluminado o caminho de Miriam ao longo da década de 1970. Ricardo Santhiago mostra como as oscilações de humor e o temperamento forte da artista contribuíram para que Miriam Batucada logo fosse empurrada para a margem do mercado ao mesmo tempo em que a vivência homossexual começou a gerar problemas de relacionamento com a família, sobretudo com a irmã, Mirna. “Hoje está tudo certo. [...] Mas eu não estou falando do agora. Eu estou falando dos anos 60! Era tabu. A cabeça era outra. [...] Eu sou de uma geração muito retrógrada”, argumenta Mirna, sob perspectiva, em depoimento ao biógrafo de Miriam. Sem turma e sem pertencer a um movimento, Miriam Batucada foi ficando sozinha, pagando preço alto pela liberdade artística e pessoal. E, por essa liberdade, a artista pediu demissão da TV Record para ir para o Rio de Janeiro (RJ) morar com Flamínia, jornalista dona do coração de Miriam. Só que Flamínia nega qualquer envolvimento afetivo com Miriam – fato sustentado por Ricardo Santhiago, que dedica várias páginas do livro à vida em comum das duas mulheres, escorado em depoimentos de quem conviveu com o casal, como Ruddy Pinho. Amigos e conhecidos também sustentam na biografia, em depoimentos dados sob a condição do anonimato, que a derrocada existencial de Miriam teria começado quando Flamínia a teria deixado para viver com Tania, amiga em comum das duas. Fato que ninguém contesta é a existência do cultuado disco coletivo Sociedade da Grã-Ordem Kavernista apresenta Sessão das 10, gravado em 1971 por Miriam com Edy Star, Raul Seixas (1945 – 1989) e Sérgio Sampaio (1947 – 1994). Assunto do capítulo Numa patota inconsequente, o anárquico álbum é o título mais conhecido da obra fonográfica da artista, cuja curta discografia é composta somente por oito singles, dois álbuns solo – Amanhã ninguém sabe (1974) e Alma da festa (1995), cujo fracasso abalou a artista – e dois EPs com gravações já lançadas em singles. Com obstinação, Ricardo Santhiago repisa os caminhos da artista, mostrando como Miriam Ângela Lavecchia de certa forma esculpiu e cultivou Miriam Batucada como personagem marginal, retratada com doses fartas de comicidade. Sim, porque a diversão e a tristeza sempre caminharam lado a lado na travessia de Miriam Batucada rumo ao anonimato solitário. A depressão, em parte motivada pelas tentativas vãs de voltar a ascender na cena nacional entre os anos 1980 e 1990, também atravessou o caminho da artista até o trágico desfecho coberto com sensacionalismo pela mídia no fim daquela tarde de 21 de julho de 1994. No mercado literário desde 18 de maio de 2024, a biografia A história incompleta de Miriam Batucada merece atenção de todos que se interessam pela música brasileira e, em maior escala, por vidas incomuns que saem dos trilhos para eternizar, ainda que tardiamente, os donos dessas vidas que se desviam da rota recomendada pela sociedade. A exumação da alma e do corpo artístico de Miriam Batucada foi feita com apuro, respeito e admiração pela artista.